Por Roselene de Araújo
A gente pode dissecar a questão da dor de infinitos modos. Sempre haverá uma maneira diferente de compreendê-la… Meu desejo seria poder escrever um texto tão sensível que fizesse todas as mulheres compreenderem o sentido da dor e aceitarem-se aliadas a ela ao invés de armarem-se para combatê-la. Mas sei que isto não é possível, porque meu texto será único, e as mulheres, infinitas em suas vivências e imagens da dor do parto construídas ao longo de suas vidas, mais ou menos maleáveis.
A dor (do parto) não é uma grandeza absoluta. Não mede xis unidades de qualquer coisa. Ela é relativa, e a múltiplos fatores combinados entre si, físicos e psíquicos, conscientes e inconscientes, e a combinação de todos eles produz a percepção psíco-física individual.
Não existe uma dor absoluta denominada “dor do parto”. Mas quero deixar bem claro o que significa isso que acabei de dizer, e a principal coisa que isso NÃO significa é que a dor não exista. Porque o potencial pra doer beirando o insuportável é enorme. A probabilidade de sentir a mais punk das dores é esmagadora. Sim, há quem não sinta nada, mas é exceção. Não contem com isso.
Dói tanto porque o parto humano é o que apresenta a relação céfalo-pélvica mais estreita da natureza. Um dia resolvemos descer das árvores e caminhar sobre duas pernas. Outro dia resolvemos engrossar nossa camada de neo-córtex cerebral. Bípedes e cabeçudos, porque somos metidos a não ser bestas. E na hora de parir nossos filhotes… agüenta aquele canal estreitinho onde mal se conseguia enfiar um ob dilatando até 10cm de diâmetro pra passar um bitelão de 4kg… Dói, mas literalmente, passa.
Essa dor alucinante pode ser reconhecida como suportável quando a mulher, em primeiro lugar, ACEITA a participação dessa dor no trabalho de parto. A atitude em relação à dor poderia então ser de aceitação de alguma coisa que faz parte da natureza do nosso corpo. A dor (do parto) não é alguma coisa a vencer, não é alguma coisa contra a qual devemos lutar, porque ela não resulta de uma patologia, ela não
sinaliza alguma coisa que está errada, como uma fratura, por exemplo. Não. Ela sinaliza o processo fisiológico do parto. Essa dor é alguma coisa que só falta a gente enxergar que é aliada. Ela te deixa irritada e vc expulsa da sala quem tá sobrando, e vc não teria coragem de fazer isso se estivesse sóbria. Ela te leva a fazer força, ou a se contorcer, a gritar, gemer, e entre as contrações os intervalos são indolores e vc pode relaxar. A dor intensa leva ao transe, e esse transe tem que ser aproveitado, ele faz parte. E vem de dentro. Você não precisa de anestésicos, perneira, ordem pra fazer força, fórcipe. Você precisa de liberdade para vivenciar seu parto.
A dor do parto É você, que não deveria deixar esta parte de você ser subtraída por uma covardia que vem de fora. Quando uma mulher faz opção pela anestesia, certamente não foi pelas mãos dela que aquele aparato todo foi disponibilizado. Existem séculos de uma cultura desfeminilizante costurando essa rede em que se cai tão facilmente,
como eu mesma caí nos meus partos. É o médico que precisa da anestesia, são os outros que precisam do conforto de uma mulher parindo quietinha, como uma boa menina.
E tem outro aspecto que eu acho muito interessante que é a coisa do ritual de passagem. Nós cultivamos algumas manifestações externas de rituais, como casamentos, batizados, bar-mitzvahs, aniversários, festas da primavera, e essas festas refletem a nossa necessidade humana de marcar as passagens das fases, de criança inimputável para o adulto responsável, da vida individual para a vida em família, de um período de dureza para outro de fartura, enfim, quando passamos de uma fase para outra sem essa marca fica faltando alguma coisa. É da nossa natureza. Tive um tio que foi tratado com hormônios nos anos 40 para acelerar seu crescimento. Na verdade ele foi cobaia das primeiras experimentações com hormônios no Brasil. De um dia para o outro ganhou pelos pelo corpo, engrossou a voz, a adolescência que deveria prepará-lo vagarosamente para a idade adulta veio num turbilhão que ele não deu conta e ninguém à volta dele compreendeu.
Ele enlouqueceu.
Assim é com o parto. Quando se tenta ao máximo passar por ele como se nada tivesse acontecido – e o ápice disso é a cesárea eletiva, está-se pulando um ritual fundamental para o início da maternidade. E o efeito cascata começa: dificuldade de estabelecer vínculo com o bb, depressão pós-parto, “falta” de leite, intolerância ao comportamento do bb. O parto normal cheio de intervenções, do qual se diz “ah, foi uma beleza, não senti na-da!!! fiquei ali, conversando, e em xis (poucas) horas o bb nasceu!!” não é muito menos maquiagem da passagem. Sim, “de repente” o bb estava ali. E ela não precisou fazer nada. Inicia-se a maternidade com a sensação de que “não é preciso fazer nada” para ser mãe. E começa a transferência de responsabilidade… impulsionada pela sensação inconsciente de que a maternidade moderna NÃO PODE ser trabalhosa.
E esse caráter trabalhoso que a maternidade efetivamente tem, não é, como nossa sociedade acredita, um sofrimento, um castigo do qual devemos nos livrar. Ao contrário, ela contém o extremo prazer que sentem as pessoas que superam desafios, que começa pela superação da própria gravidez, convivendo por exemplo com enjôos e mudanças no corpo e na vida como um todo sem a compulsão de querer lutar contra isso. É irreversível.
O processo do parto vem sendo aprimorado há milhões de anos (ou milhares, depende do critério), e a humanidade definitivamente não aperfeiçoou este processo, apenas o corrompeu nos últimos anos. Anestesia, ocitocina na veia, posição horizontal, raspagens, submissão a alguém como dono do parto, kristeller, episiotomia, tudo isso num trabalho de parto que está transcorrendo sem intercorrências, não é evolução: é perversão. Das grossas.
Você e seu bb não precisam de mais nada além dos seus corpos com seus hormônios para permitir o nascimento. Mas não esqueça de ter alguém pra te dar uns beijos na boca** e pegar seu bebê!
E ainda faltou falar um monte de coisa, como por exemplo o arquétipo da dor como sofrimento herdada do castigo dado a Eva. Vou procurar uma mensagem em que falo sobre isso…
Roselene de Araújo
São Paulo-SP, março de 2006
Este artigo pertence ao http://gestavida.blogspot.com/
Plágio é crime e está previsto no artigo 184 do Código Penal.
Plágio é crime e está previsto no artigo 184 do Código Penal.